“Classe é mais interseccional que a Interseccionalidade”, do blog Imperium ad Infinitum

O original pode ser lido aqui.

<< A Esquerda, como existe atualmente, está extremamente moralizada e vive num clima de culpa permanente, frequentemente envergonhada e apologética por sua orientação à luta de classes. Como resultado disso, até mesmo organizações socialistas acabam trabalhando em causas com foco único e questões de opressão a grupos específicos, não apenas com igual ênfase, mas dotando-as de maior importância do que um foco na luta de classes. Tais práticas e sentimentos precisam ser expurgados. É preciso deixar inequivocamente claro de que se trata de uma traição não apenas à classe trabalhadora, mas aos próprios oprimidos, porque uma abordagem que tende a dar maior ênfase à luta de classes é, na verdade, mais interseccional do que uma que dá mais atenção a opressões específicas do que à classe.

Uma cacetada sarcástica e necessária à defesa dos Democratas foi feita por Ross Wolfe no The Charnel House:

“Mas o meu time colorido de identidades marginalizadas vai destruir o kyriarcado enquanto nós borrifamos areia de diversidade mágica de duendes em todo mundo e criamos uma brilhante utopia liberal Starbucks.

Liberais de esquerda ditos ‘progressistas’ fizeram isso com eles mesmos. Isso é exatamente o que se voltar para politicas culturais (i.e., identitárias), abandonando classe como base para uma aliança socialmente transformadora, faz de você.”

O principal problema na vida de qualquer grupo oprimido (ou, como deveríamos reaprender a dizer, qualquer grupo duplamente oprimido, levando em conta que a classe trabalhadora inteira é oprimida), na verdade, dificilmente tomará a forma da opressão peculiar àquele grupo específico.

O principal problema na vida de qualquer grupo duplamente oprimido é, normalmente, “como eu vou fazer pra comer hoje?” Isso não é apenas especulação, mas está apoiado por dados eleitorais. [1]

É verdade que diariamente, por exemplo, todas as pessoas negras lidam com a possibilidade de violência policial. É também verdade, contudo, que todos os dias, todas as pessoas negras lidam com o obstáculo inegável de ter que conseguir dinheiro para comer, pagar o aluguel, despesas médicas, mobilidade, etc. Isso se extende, de várias formas, por várias analogias, às mulheres, à comunidade LGBT, imigrantes e todos os grupos oprimidos.

Pode soar insensível dizer que o principal problema com o qual a maioria das mulheres lidam não é o sexismo. Obviamente, sexismo é um grande problema e não é como se ele não devesse ser combatido. Mas na verdade é mais interseccional, mais feminista, combater o problema que é maior do que o sexismo para a maioria das mulheres. O maior, mais imediato problema de vida-ou-norte com o qual a maioria das mulheres lida é a economia, o dinheiro, o padrão de vida, o capitalismo. Claso que é até difícil separar o capitalismo do sexismo, dado que a forma como o capitalismo opera é tão sexista que a distribuição do dinheiro pode ser literalmente quantificada como sexista, na forma do salário desigual. Ainda assim, os problemas mais graves que atingem a maioria das mulheres são os mesmos problemas que atingem a maioria dos homens: será que eu vou comer hoje? Como vou fazer pra pagar o aluguel? Eu tenho emprego? Como vou conseguir arrumar um? Assistência à saúde? Como vou pagar as despesas das crianças ou prevenir a gravidez?

Isso não quer dizer que demandas de grupos específicos não devam surgir. Isso quer dizer que a Esquerda deveria mudar sua ênfase e mensagem principal em direção a uma imitação maior do sucesso obtido pelo eixo na ênfase à luta de classes e demandas econômicas desenvolvido pela campanha de Sanders e pela conselheira de Seattle, a socialista Kshama Sawant [2]. Não é uma questão de “preto-e-branco”: levante demandas, ou nunca as crie. Tem a ver com frequência e proporção – quanto você vai levantá-las, quanto tempo e espaço e foco você dá a elas?, uma questão de equilíbrio [3].

A mensagem de uma aliança verdadeiramente interseccional seria colocar a ênfase primária na luta de classes e nas demandas econômicas, enquanto levantava demandas de grupos específicos, exatamente no sentido de refletir o fato de que problemas econômicos são os problemas primários e maiores de qualquer grupo duplamente oprimido, e que, de fato, problemas econômicos até mesmo afetam de maneira mais intensa do que o resto da classe trabalhadora em geral. Há também uma diferença contextual de como e onde essas demandas devem ser trazidas à tona – ao invés travar um arco-íris de um milhão de campanhas pontuais, a Esquerda deve focar seus esforços na luta de classes e lutar pela diversidade, inclusão, tolerância, e contra a discriminação no contexto do trabalho, etc, e aí voltar a tentar afetar as leis num nível político/nacional, uma vez que tenhamos construído uma base proletária que tenha um real impacto sobre elas.

O que eu estou tentando fazer é rejeitar uma interseccionalidade super-especializada e sem consciência de classe que não demonstra interesse em construir uma unidade em torno da classe, ou ter habilidade de trabalhar com pessoas comuns. Para quem essa interseccionalidade está realmente voltada? Ela se volta para as elites acadêmicas de classe média dos grupos oprimidos, como muitas vezes foi sugerido? De fato, eu acho que a realidade é ainda pior. Na verdade, eu acho que essa “interseccionalidade” não-proletária (será que é realmente uma forma de interseccionalidade, se não inclue as massas trabalhadoras?) está, na verdade, voltada para a classe média-alta acadêmica e ONGS, e, dessa forma, ao invés de ser um tipo de projeto liberal burgês (embora algumas vezes possa sê-lo), é, na verdade, principalmente adotada por um cenário branco, às vezes masculino, de classe média alta. Obviamente, essa “interseccionalidade” não está voltada para as massas trabalhadoras (e não-trabalhadoras) de grupos duplamente oprimidos, que podem também existir fora desse mundinho de inférteis disputas intra-Esquerda e podem literalmente jamais ter ouvido a palavra “interseccionalidade” em suas vidas.

Indo contra as expectativas de ativistas moralistas, as pessoas que focam nas demandas de econômicas ou de classe podem desenvolver uma relação com as pessoas e as comunidades de grupos duplamente oprimidos muito mais próxima do que os ativistas que focam em demandas específicas às essas ecomunidades jamais farão.

Se os problemas econômicos são os problemas diários mais urgentes de grupos duplamente oprimidos, é evidente que as pessoas que estão direcionando seus esforços às demandas econômicas, ao movimento trabalhista ou socialista, têm, na realidade, como objetivo implicido os membros de movimentos de mulheres, movimentos negros, movimento LGBT, a luta dos imigrantes e possivelmente outros, a despeito de terem percebido isso ou não, independente de terem levantado demandas explícitas em relação a esses grupos ou sequer pensado nesses grupos. A conexão é material, ao invés de intencional.

Porque eu estou argumentando em prol de alco que soa como reducionismo de classe? Afinal, na minha perspectiva, você poderia, em teoria, não trazer demandas que concernem a grupos “minoritários” e mesmo assim parecer alguém muito interseccional. Porque atualmente na Esquerda a insistência na falida agenda arco-íris, na superestima de demandas “minoritárias” e na total ignância e abandono da economia e das demandas de classe está tão forte que nós teríamos que literalmente defender algo que parece (mas só parece, não é) reducionismo de classe, para apenas resultar em um acordo resultante em uma ênfase meio-a-meio. O campo de atuação está totalmente desbalanceado e injusto devido às políticas identitárias que eu teria que ser “injusto” na direção contrária para balancear isso. O mais engraçado é que meu argumentos são verdadeiros e justos, e que a ênfase na classe é, na verdade, mais interseccional que as demandas de grupos específicos.

Se a “interseccionalidade” é principalmente uma desculpa para jogar os Outros, os “não-oprimidos” debaixo do ônibus toda vida, para calar a participação de uma pessoa numa conversa, embora ela provavelmente pertença à classe trabalhadora, não há nada interseccional nisso. Nada está interseccionando. Ninguém está conectando. As pessoas estão brigando entre si ao invés de se unirem. Foda-se essa interseccionalidade. Trata-se de uma intersecção de anti-solidariedade, uma intersecção de todas as repetições possíveis de sectarismo, uma intersecção de todas as formas possíveis de não-intersecção. Ela é auto-contraditória em sua própria natureza e definição. Interseccionalidade, como existe hoje, é anti-interseccional.

Hillary Clinton nem sequer conseguiu atrair uma maioria de mulheres brancas [4]. Como uma estratégia vitoriosa tende mais a atrair grandes quantidades de trabalhadores que fazem parte de grupos duplamente oprimidos, ao invés de pequenas amostras de pessoas à margem desses grupos, a interseccionalidade de classe traz a ênfase de volta para a luta de classe trans-minoritária e para o fato de que a demanda econômica é mais relevante para a Esquerda contemporânea de base, ofuscando as demandas “minoritárias”. >>

[1] Dêem às pessoas o que elas querem: a candidatura de Bernie Sanders não é “problema de brancos”. https://www.jacobinmag.com/2015/06/sanders-race-primary-president-civil-rights/
[2] Na Wikipédia: “Kshama Sawant é uma política socialista, ativista e membro da Alternativa Socialista que faz parte do Conselho de Seattle”.
[3] Equilibrando identidade e classe. https://imperiumadinfinitum.wordpress.com/2016/11/11/balancing-identity-and-class/
[4] Clinton couldn’t win over white women. https://fivethirtyeight.com/features/clinton-couldnt-win-over-white-women/

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